ARTIGOS

 

NOS LIMITES DO AMOR

 

Renato Queiroz
Mestre em Educação pela UDE/UY


            Tratar de um assunto como relações entre pais e filhos é por demais atraente, mas sempre estaremos correndo o risco de apresentar uma visão simplista em decorrência de todas as circunstâncias e particularidades possíveis. Ainda assim, torna-se muito enriquecedor explorar as nuances que o assunto traz. Winnicott (1999) discorre e apresenta uma lista de razões pelas quais os pais poderiam não amar o seu bebê da forma que é colocada pela sociedade, pais e mães devotados, pai herói, supermãe, e justifica sua intenção de debater, através de um programa de rádio exibido na BBC de Londres, com as mães sobre seus filhos.

Poderão perguntar: qual é a utilidade de pôr em palavras o que é incômodo em ser mãe? Eu penso que as mães são ajudadas se forem capazes de expressar suas angústias no momento que as sentem. O ressentimento reprimido deteriora o amor que está subjacente em tudo. (WINNICOTT, 1999, p. 88)

            Os pais estão envolvidos permanentemente com vários objetivos distintos na prática de suas vidas, objetivos esses por vezes difíceis de serem combinados. Amar e ser amados por seus filhos e conjugue, ser bons profissionais sem atropelos, estudar e participar da vida social. Mas como conciliar o zelo extremado de pais com o rigor dos horários no seu ambiente de trabalho, por exemplo? As situações são postas na vida dos pais o tempo todo. As escolhas são exigidas a todo o momento, e os pais devem estar atentos para a tentação dos extremos. "Assim suponho que as crianças continuarão sendo pestes e as mães continuarão contentes por terem tido a oportunidade de serem vítimas" (WINNICOTT, 1999, p. 100).
Ainda sob o olhar de Winnicott (1999), existem os fatores vividos na infância dos pais que podem vir a se manifestar no relacionamento com os seus filhos, e dá o exemplo:

Pode ser que ela conclua amar seu bebê de um modo perfeitamente natural e isso faze-la sentir-se acabrunhada por achar que sua mãe não a amou do mesmo jeito, e por achar que estava apresentando à sua mãe um exemplo (1999, p. 114).

            Devido à complexidade e variedade de sentimentos envolvidos, resta aos pais buscar constantemente a avaliação dos caminhos que seguem, atenuando a angústia e as culpas, que podem servir para tencionar o relacionamento. Quanto mais severa for a tentativa de buscar a perfeição, maior será a frustração, e isso servirá para obstruir os canais do afeto.

Na criação dos filhos não se ganha muito em querer visar à perfeição. Muito do que está errado corrige-se com o tempo; ou corrige-se o suficiente para não se mostrar. Mas algumas coisas não se consertam. (WINNICOTT, 1999, p. 73)

            O manto da santidade que envolve os pais e, em especial, a mãe, produz uma exigência de ser coerente com esse modelo fantástico de tal forma que as sensações mais simples inerentes ao ser humano como sono, fadiga, dor, medo e preguiça podem ser sentidos como incapacidade ou inadequação, e até falta de qualificação para o amor.
Esse bebê de carne e osso que é agora dela machuca-a quando mama, se bem que o processo de amamentação pode ser muito satisfatório. Gradualmente a mãe descobre que a criança a trata como uma serviçal sem remuneração e exige atenção, e no começo não está preocupada com o seu bem estar. Finalmente o bebê morde-a e é tudo por amor. Espera-se que a mãe ame esse bebê de todo o coração no começo, incondicionalmente, tanto as partes irritantes quanto as agradáveis, e inclusive a desordem. (WINNICOTT, 1999, p. 89).
Entre essas difíceis sensações que permeiam o imaginário dos pais, há ainda que se considerar a elaboração de ser amado e estabelecer os limites dessa relação. Esses limites da relação com o mundo, entre si no ambiente familiar... Tem-se que ser bons o bastante para aceitar e compreender os movimentos contrários dos filhos, batendo de frente com os seus conceitos sobre si mesmos e ainda assim conseguir ser eficaz na responsabilidade de cuidar.
Cuidar de si e do outro, o pequeno outro, o filho. Respeitar a individualidade do filho numa boa relação de afeto, que permite o seu crescimento. Cumprindo a difícil tarefa de ser o elo de ligação com o mundo, até que não seja mais preciso. E perceber quando é preciso promover o distanciamento para facilitar a individuação. Podemos compreender que o estabelecimento de limites consiste numa antipática ação, que carece de um equilíbrio que envolve não só as condições morais, mas especificamente as afetivas e que efetivamente não se encontram apenas localizada nas suas consciências.
Schettini (1998) refere-se aos limites como necessários à redução dos estados de ansiedade porque não delimitá-lo intensifica a insegurança. É exatamente a falta de referenciais entre o que pode e o que não pode fazer que deixa a criança sem condições de estabelecer a segurança interna.
É preciso estar suficientemente preparados para exercer bem a prática de ser pais e mães e, dentre tudo o que pesquisamos, constatamos que a melhor estratégia é não ter uma rígida estratégia de tentar ser perfeito, comparando num processo contínuo todo o dia-a-dia do relacionamento. O compromisso na responsabilidade pela formação e presença de outros seres no mundo cobra dos pais, a intenção de tentar fazer com que as dificuldades não se constituem em danos à vida dos filhos quando se sente que pode ampliar os conhecimentos sobre si mesmos para atingir condições mais cômodas e eficazes que talvez evitem refletir ou repetir as intervenções dos próprios pais, sem, entretanto vislumbrar a excelência.
Schettini nos lembra que Winnicott resumiu essa questão quando disse:

As crianças saudáveis necessitam de pessoas que continuem exercendo o controle, mas as disciplinas devem ser proporcionadas por pessoas que possam ser amadas e odiadas, desafiadas ou de que se dependa; os controles mecânicos são inúteis e tampouco o medo pode ser um bom motivo para a obediência. É sempre uma relação viva e estimulante que fornece a necessária liberdade de que o verdadeiro crescimento precisa. (SCHETTINI, 1998, p. 51)

            Na sociedade contemporânea, os pais têm ainda que estar atentos à globalização da economia, que exige capacidade de competitividade como profissionais e como provedores. Precisam dar atenção aos filhos, dedicar-lhes cuidados. Precisam estudar, trabalhar e competir para conseguir gerar recursos suficientes para que os filhos possam estudar nos melhores colégios, freqüentar cursos de idiomas, ter acesso aos mais avançados artifícios tecnológicos para também participarem da sociedade cibernética. E ainda precisam estar supridos de ética.
Eis ainda um dilema que precisa ser encarado, observando ainda que precisam proporcionar muito, mas não tudo, pois as frustrações são também necessárias, inclusive a dos pais.
Os pais devem perceber as suas limitações, pois só assim poderão compreender a dos seus filhos. O equilíbrio entre todos esses fatores constitui numa difícil atividade. Talvez aí resida o problema; a constatação que tal como eles os filhos são imperfeitos e isso ataca frontalmente o amor narcísico. Não se tem toda a resposta para as dúvidas. E ainda tem que se considerar que as respostas dos pais podem não refletir as expectativas dos filhos sobre o mundo.

Esse é uma das razões pelas quais um pai bom o bastante é aquele cujas ações e reações, cujas aprovações bem como críticas são temperadas por uma ponderação criteriosa das percepções da criança. Pais bons o bastante se esforçam para avaliar quaisquer assuntos e reagir tanto de sua perspectiva adulta quanto da perspectiva totalmente diferente do filho, baseando suas atitudes em uma conciliação razoável das duas, ao mesmo tempo em que aceitam que as crianças em virtude de sua imaturidade possam entender as questões apenas de seu próprio ponto de vista. (BETTLEHEIN, 1997, p. 57)

            A expectativa de desenvolver bem todas essas circunstâncias não deve comprometer a naturalidade da relação. A maneira através da qual lidamos com a culpa vai influir diretamente na espontaneidade das nossas ações, pois somos seres limitados.
O sentimento de culpa de não se sentir pais ideais impedirá no surgimento de pais bons o bastante.
Os pais da atualidade enfrentam a angústia de não serem preparados para ter filhos e cuidar deles. Ainda assim, não se aprende a conviver com os filhos sob nenhum método específico, embora existam iniciativa de grupos de pais que se reúnem para discutir, com o apoio de diversos profissionais, os mais variados temas que dominam o seu dia a dia. A Escola de Pais é um exemplo de tentativa de tratar de assuntos polêmicos na expectativa de trocando idéias, diminuir a angústia e facilitar o entrosamento e a compreensão dos conflitos vividos entre pais e filhos.

Assim é que a maioria das pessoas da moderna classe média não aprendem muito em sua própria infância, como cuidar de crianças. As coisas eram diferentes quando as famílias eram mais numerosas e nossos parentes viviam perto de nós... Hoje, contudo, os pais se sentem que muito mais é exigido deles. (BETTLEHEIN, 1997, p. 19)

            Desde o nascer do filho são postas diante dos pais, situações que exigem muito equilíbrio, responsabilidade e compromisso. Estes são por vezes levados a camuflar os seus desejos. Ocultando-os e não se permitindo viver as suas individualidades aos poucos se sentirão desconfortáveis. Isso ocorre em virtude da dificuldade de identificar e limitar os espaços entre o eu e o outro, mesmo sendo este último um  filho, ser tão amado, produzindo à sua imagem e semelhança. 
Ao nascer, o bebê provoca na mãe sensações mais diferentes, de intenso amor e carinho, entretanto ela está cansada, com sono, sente ainda dores e precisa demonstrar uma força sobre-humana. O pai parece esquecido daquele processo simbiótico e é requisitado a cooperar todo o tempo. Há ainda todas as modificações orgânicas hormonais que fazem um rebuliço no humor da mulher e ainda a confundem. Mas ela precisa demonstrar todo o afeto, paciência e dedicação. A amamentação, também constitui uma situação muito delicada, importante no desenvolvimento físico e psíquico do bebê e, para isso, os pais precisam estar prontos a cooperar. Toda a maternagem tem caráter decisivo na construção do novo ser.
E os filhos crescem e a relação vai mudando, as exigências são outras. Os filhos precisam constituir seu espaço, sua identidade, seus planos de vida. E os pais não ocuparão mais os postos importantes da infância. A adolescência exige mais ainda esforço para compreender e respeitar os filhos, aceitar que estão se tornando independentes e que não precisam mais dos mesmos cuidados, estão se constituindo adultos também e em breve sairão das asas, pois terão aprendido a voar com as suas próprias. Lembramos do exemplo do peixe tucunaré, que nos é dado por Leonardo Boff (1999, p.109):

Pai e mãe têm um imenso cuidado com seus filhotes (alevinos). Fazem o ninho escavando um buraco no fundo do rio e circulam sempre ao redor para protegê-los. Quando ensaiam sair do ninho, os acompanham com cuidado e os alertam contra a dispersão. Ao mínimo risco os filhotes voltam todos juntos ao ninho guiados pelos pais. Os retardatários são recolhidos cuidadosamente dentro da boca dos pais e devolvidos ao grupo.

            Nesse ponto reside a difícil arte em ser pai e mãe. Trazes filhos à boca para protegê-los, quando necessário, sem trincar os dentes, no sentido de que eles possam ter a liberdade suficiente para crescer e se constituir enquanto pessoa, e isso é cobrado dos pais pelos filhos, especialmente na adolescência.
Mas, como saber quais os limites do amor?
O educador Moacir Gadotti (1987) num livro em que dá o depoimento como pai sobre as dúvidas com as quais se deparou no momento do seu divórcio, comenta:

Mas o amor não é tudo e nem tudo pode. Há nele muita fantasia e ilusão. A ilusão amorosa é gerada pelo poder que tem o amor de esconder os limites, de derrubar as barreiras, força de derrubar e também construir outras barreiras. (GADOTTI, 1987, p. 32)

Nesse livro que escreveu, Gadotti (1987) nos lembra a alegria revelada por Jean Paul Sartre com a morte do pai, evidenciando que os conflitos partem de ambos os lados e de como pode ser sufocante uma relação sem limites ou sem amor:

Ele me deu a liberdade, afirma ele. Não há bons pais, é essa regra... Se tivesse vivido, o meu pai, ter-se-ia deitado sobre mim com todo o seu comprimento e ter-me-ia esmagado. Felizmente ele morreu jovem... Gerar filhos nada há de melhor; tê-los que iniqüidade. (GADOTTI, 1987, p. 34)

            Como exemplo de abandono e desamor recorre a Kafka na sua carta a meu pai: “Não posso me lembrar de você ter abusado de mim diretamente e em termos abusivos baixos. Nem era isso necessário; você tinha tantos outros métodos... Você me espancava com suas palavras sem qualquer dificuldade”. (GADOTTI, 1987, p. 34)
Como em todas relações humanas, há as dúvidas as incoerências. Freud denominou de ambivalência essa existência de afetos contrários como amor e ódio, sentida pelos pais e em especial pela mãe. A psicanalista Roszika Parker (1997) defende, que a presença da ambivalência deve ser observada como decisiva no sentido de levar à reflexão no exercício da maternidade.

Melanie Klein considerava que a ambivalência tem um papel positivo a desempenhar na vida mental, como uma defesa contra o ódio. Postulo que é justamente na própria angústia da ambivalência materna que reside uma relação frutífera para mães e filhos. (PARKER, 1997, p. 24)

            Essa tão delicada vivência de amor que envolve criador e criatura é tão dolorosa quanto prazerosa. Temos encontrado diversas opiniões sobre como é comum o sentimento, digamos menos nobres, contidos nos relacionamentos pais e filhos. Entretanto não podemos esquecer de enfocar o lado gratificante e alegre que perpassa toda essa dinâmica. Acompanhar a gestação e o nascimento de um filho constitui, segundo muitos, as suas melhores alegrias. Quantas vezes ao perguntarmos aos nossos amigos sobre qual a melhor coisa da vida, ouvimos uma resposta que são os filhos?
Inúmeros relatos já podemos presenciar de pais e mães sobre as primeiras descobertas, os primeiros passarinhos, o primeiro e único dentinho, a primeira palavrinha dita. Tantas oportunidades de observar, em festinhas tradicionais em que se comemoram o Dia dos Pais ou Dia das Mães, lágrimas de alegria e orgulho estampadas nos rostos desses pais, seres habitados pela ambivalência.
De todas as teorias que tentamos catalogar, virão um infinito número de versões que ilustram a vivência entre pais e filhos. Tentamos aqui expor as diferentes formas de abordar o assunto. No entanto não concluímos coisa alguma, a não ser que amar é um sentimento humano e como tal possui os limites da imperfeição. Com relação a tudo isso, concordamos com o que diz Winnicott (1999):

Penso que, de um modo geral, se cada um pudesse escolher seus próprios pais, coisa que, obviamente não pode fazer, preferiria ter uma mãe que alimentasse um sentimento de culpa – de qualquer modo, que se sentisse responsável, e que sentisse, se as coisas correram mal, que isso era provavelmente culpa dela – em vez de uma mãe que imediatamente se voltasse para algo exterior a fim de explicar tudo, que o problema tinha sido culpa dela  - em vez de uma mãe que imediatamente se voltasse para algo exterior a fim de explicar tudo, que o problema tinha sido culpa da trovoada da noite anterior à responsabilidade por coisa nenhuma. Penso que das duas, por certo os casos extremos, eu preferiria a mãe que se sente muito responsável. (WINNICOTT, 1999, p. 119).

 Referências

BETTLEHEIM, B. Pais bons o bastante. Rio de Janeiro: Campus, 1997.

BOFF, Leonardo. Saber Cuidar: ética para o meu filho. Rio de Janeiro: Vozes, 2000.

GADOTTI, M. Dialética do amor paterno. São Paulo: Cortes, 1987.

HOLLANDA, A.B. Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.

PARKER, R. A mãe dividida. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, 1997.

SALMALIN, N. ; JABLW, M. Amar seus filhos não basta. São Paulo: Saraiva, 2000.

SCHETTINI, Luís. Carão com Carinho. Recife: Bagaço, 1998.

WINNICOTT, Donald. Conversando com os pais. São Paulo: Martins Fontes, 1999.